Cientistas propõem modelo amazônico de alta tecnologia e sem devastação
Diante do nível abissalmente baixo do debate público sobre qualquer tema relevante nos últimos anos, a gente até leva um susto quando percebe que, meu Deus do céu, ainda há seres humanos capazes de pensar no Brasil - e pensar "o" Brasil, como projeto de país. Foi mais ou menos essa a minha reação - OK, estou hiperbolizando um pouco, mas releve - ao ler um artigo publicado nesta semana na revista científica "PNAS", da Academia Nacional de Ciências dos EUA, por um time de pesquisadores brasileiros (e um empreendedor peruano).
Misto de diagnóstico científico rigoroso e manifesto político - uma combinação que funciona melhor do que você poderia imaginar, aliás -, o texto é talvez o melhor resumo dos últimos tempos sobre o passado recente, o presente e os futuros possíveis da Amazônia, aquele lugar que, para uma parcela ainda assustadoramente alta dos nossos compatriotas, pode ser definido como "monte de mato" ou "lugar bom para criar boi, plantar soja e construir hidrelétrica" (a adesão a uma dessas opiniões varia basicamente de acordo com o poder aquisitivo e a familiaridade do sujeito com as empreiteiras e o complexo agroindustrial tupiniquim).
Capitaneados pelo climatologista Carlos Nobre, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, os pesquisadores argumentam de maneira persuasiva que o desmatamento tem sido um motor de crescimento econômico no máximo mequetrefe na Amazônia brasileira.
Basta dizer que o PIB agrícola amazônico corresponde a 14,5% da riqueza produzida pelo setor no país hoje - um resultado que vem de 750 mil km2 de área desmatada. Bem, o Estado de São Paulo, sozinho, responde por 11,3% do PIB agrícola nacional - utilizando uma área que é pouco mais de um quarto da destinada à agropecuária na Amazônia. Em outras palavras, a ineficiência do agronegócio da região ainda é brutal. E o mais curioso é que o valor agregado gerado pelo setor triplicou entre 2005 e 2014, período no qual o desmatamento despencou em cerca de 80%. A equação "menos mata = mais riqueza" é conversa para boi dormir, com o perdão do trocadilho.
A questão não é só essa, porém. Considerar aceitável que porções imensas da floresta continuem a ser postas abaixo só para jogar gado em cima equivale a defender o incêndio da biblioteca de Alexandria para que se construa um supermercado nos escombros. A comparação, aliás, está longe de mostrar a dimensão exata da tragédia: com todo o respeito à riqueza cultural da Antiguidade clássica, ela é fichinha perto dos incontáveis gigabytes de informação contidos no DNA dos seres vivos amazônicos, sem falar na complexidade das interações entre essas criaturas ou entre eles e os elementos abióticos, ou seja, não vivos - a água, a atmosfera, o solo e as rochas.
Esse é o cerne da parte propositiva do artigo: em vez de ligar as motosserras no 220, o que deveríamos estar fazendo é usar toda essa riqueza biológica (e a riqueza cultural dos povos que já a utilizam) como combustível para uma revolução industrial biotecnológica. Fármacos, cosméticos, alimentos mais nutritivos, novos materiais e tecnologias: é virtualmente impossível que a biblioteca de Alexandria amazônica não contenha no mínimo pistas preciosas para transformar o Brasil num protagonista global que não se limite a vender picanha e suco de laranja para os gringos.
Essa é a única ponte para o futuro que realmente tem chance de nos levar a algum lugar. Não aceite imitações.
Written by Reinaldo José Lopes
Published on Folha de S. Paulo